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Burkina Faso: julho


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As eleições destinadas a restabelecer um governo civil democrático no Burkina Faso em julho de 2024 foram consideradas “não prioritárias” e adiadas indefinidamente pela junta militar liderada pelo Comandante Ibrahim Traoré, em setembro de 2023.

O governo democraticamente eleito de Roch Kaboré foi derrubado, em janeiro de 2022, por uma junta liderada pelo Coronel Paul-Henri Damiba. Em julho de 2022, a junta acordou um calendário de transição de 24 meses com a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Depois, em setembro desse ano, Traoré, de 35 anos, depôs Damiba e substituiu a Constituição por uma carta que lhe conferia poderes unilaterais. Apesar de concordar em manter o calendário de transição previamente negociado, a recusa de Traoré em avançar com a transição, em julho de 2024, sugere a sua intenção de se manter no poder por tempo indeterminado.

As tomadas de poder extra constitucionais minaram o processo político de orientação democrática do Burkina Faso duramente conquistado, após o regime de 27 anos de Blaise Compaoré (a ele próprio chegou ao poder através de um golpe de Estado) após protestos em massa em 2014. A eleição subsequente de Kaboré, em 2015, foi de longe a mais competitiva do Burkina Faso, dando início a uma série de reformas. Entre estas, destacam-se os ganhos na construção de uma cultura de profissionalismo militar e na adoção de uma Estratégia de Segurança Nacional abrangente.

Captain Ibrahim Traoré parades in the streets of Ouagadougou

O autoproclamado líder da junta militar que governa o Burkina Faso, Capitão Ibrahim Traoré, desfila nas ruas de Ouagadougou. (Foto: AFPTV)

A instabilidade política provocada pelas intervenções militares tem um longo legado no Burkina Faso. De forma direta ou indireta, os militares assuimiram o poder durante 51 dos 64 anos de independência do país, o que torna a abertura democrática de 2014-2022 e a sua inversão ainda mais significativas.

O adiamento unilateral e indefinido das eleições de 2024 por parte da junta é coerente com o caráter ad-hoc do governo de Traoré no Burkina Faso. As leis são aplicadas de forma arbitrária e as decisões são tomadas ao sabor dos caprichos do líder da junta.

Burkina Faso conscription of journalists

Os jornalistas Yacouba Ladji Bama (à esquerda) e Issaka Lingani foram recrutados no início de novembro pela junta militar do Burkina Faso. (Fotos: Yacouba Ladji Bama e YouTube/Presse Echoes)

Isto inclui a mobilização “voluntária” de 50.000 elementos para as forças de proteção voluntária. Esta mobilização, autorizada pelo decreto de emergência de Traoré, tem sido cada vez mais utilizada como um meio de recrutamento forçado, visando jornalistas, membros de partidos políticos civis e críticos da junta da sociedade civil. Entre eles, Daouda Diallo, galardoado em 2022 com o prestigiado prémio internacional de direitos humanos, Martin Ennals, que foi raptado no final de 2023 em Ouagadougou. Mais tarde, o seu nome foi incluído nas listas de recrutamento.

O Movimento Burkinabé dos Direitos do Homem e dos Povos (MBDHP) declarou que a mobilização geral foi especificamente concebida e adotada não para contribuir na luta contra o terrorismo, mas para reprimir as opiniões críticas.

Estas ações punitivas fazem parte de uma campanha mais vasta para reprimir os meios de comunicação social e a dissidência pacífica, a fim de manter a aparência de apoio popular à junta. São suspensos os meios de comunicação social,que informam sobre a deterioração da situação de segurança no país, as violações dos direitos humanos ou a dissidência no seio das forças armadas. Esta situação tem sido acompanhada por grupos de milícias juvenis organizados pela junta para intimidar fisicamente quaisquer sinais de dissonância dos cidadãos. O efeito foi restringir drasticamente aquele que foi uma dos países com maior liberdade de impresnsa da África Ocidental.

Apesar desta intimidação, persiste a resistência dos partidos políticos da oposição e da sociedade civil historicamente robusta do Burkina Faso. Não obstante a proibição de protestos, pelo menos 15 grupos da sociedade civil e sindicatos denunciaram coletivamente o adiamento das eleições. Embora o espaço para a dissidência seja limitado, há uma percepção crescente no Burkina Faso de que a junta não tem qualquer intenção de abandonar o poder e que, o que era visto como um processo transitório, deverá perdurar indefinidamente com a atual trajetória.

Apesar da intimidação da junta, persiste a resistência dos partidos políticos da oposição e da sociedade civil historicamente robusta do Burkina Faso.

Outro exemplo da falta de responsabilização da junta é o aumento das violações dos direitos humanos associados à atuação das  forças armadas. Grande parte destas ações tem como alvo as comunidades consideradas apoiantes da insurreição militante islâmica que ultrapassou as fronteiras do do Mali e tem vindo a espalhar-se pelo Burkina Faso. Entre estes, conta-se um incidente na aldeia de Karma, em abril de 2023, no qual 156 aldeões, incluindo mulheres e crianças, terão sido massacrados pelos militares.

A segurança piorou drasticamente no Burkina Faso desde os golpes de Estado. Desde 2022, o número de eventos violentos envolvendo militantes islâmicos duplicou e o número de vítimas mortais triplicou (estima-se que, em 2023, 5.000 pessoas tenham sido mortas no Burkina Faso). A instabilidade provocou a deslocação de mais de 2,1 milhões de burquinenses (cerca de 10% da população). O efeito traumático desta violência na mentalidade da população burquinense é particularmente chocante, tendo em conta que o Burkina Faso tinha conseguido evitar qualquer tipo de violência organizada significativa desde a sua independência.

Os grupos militantes islâmicos (Ansaroul Islam e Estado Islâmico no Grande Sahara), responsáveis por grande parte desta violência, cercaram pelo menos 36 cidades burquinenses e controlam mais de metade do país, avançando inexoravelmente para a capital, Ouagadougou. A violência dos militantes islâmicos também se intensificou ao longo das fronteiras meridionais do Burkina Faso com os países costeiros da África Ocidental, o Benim e o Togo.

Para fazer face a esta crescente ameaça à segurança nacional, a junta militar do Burkina Faso dissolveu incongruentemente as parcerias de segurança na região e a nível internacional (incluindo com o G-5 Sahel e a CEDEAO).

O adiamento da transição para um governo civil por parte da junta de Traoré tem profundas implicações a nível da segurança nacional e regional. A nível interno, o país está a atrasar o restabelecimento de uma autoridade legítima que possa mobilizar um esforço credível e sustentado de toda a sociedade, necessário para derrotar os grupos militantes. Um governo democrático estaria também numa posição mais favorável para reunir o apoio político, financeiro e de segurança da CEDEAO e dos parceiros internacionais, necessário para mitigar a situação de insurreição, ultrapassando a capacidade das forças armadas do Burkina Faso para a enfrentarem de forma unilateral. Além disso, a decisão põe em risco uma nova escalada de violência no Burkina Faso, comprometendo diretamente a segurança dos seus vizinhos do sul, o Benim, o Togo, a Costa do Marfim e o Gana.