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Lições para África do surto mortífero de COVID na Índia

O surto de casos de COVID-19 na índia, instigado por uma variante mais transmissível e complacência, representa um sério aviso para as populações africanas se manterem vigilantes contra a pandemia.


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A Índia tem estado a lutar contra um surto mortífero de COVID-19 que atingiu o país como um furação, no início de abril. No espaço de um mês, foram registados mais de 400 000 novos casos. A 19 de Maio, a Índia registou um novo recorde mundial de 4529 mortes por COVID-19, em 24 horas. Desde março, mais de 500 médicos indianos faleceram devido a COVID. Os números reais são provavelmente muito mais elevados devido a limitações de testagem. Uma estimativa conservadora indica que a Índia registou mais de 400 milhões de casos e 600 000 mortes.

Os hospitais indianos estão a transbordar com doentes nos corredores e entradas. As camas hospitalares disponíveis são muitas vezes partilhadas por dois doentes. Milhares estão a ser recusados. Famílias inteiras estão a adoecer nas cidades e, em algumas áreas rurais, aldeias inteiras. Os outros países na região, como o Nepal, a Tailândia e a Malásia também tem verificado um aumento elevado de casos, alimentado pela variante altamente transmissível da Índia.

O surto da Índia também é notável porque o país conseguiu largamente evitar o pior das primeiras fases da pandemia.

«O surto de COVID-19 na índia é um alerta para África.»

O surto de COVID-19 na índia é um alerta para África. Como a Índia, a África tem conseguido evitar o pior da pandemia no ano passado. Muitos países africanos subsarianos partilham características sociodemográficas com a Índia: uma população jovem, elevadas populações rurais, que passam a maior parte do tempo fora de casa, estruturas familiares extensas, poucos lares de idosos, áreas urbanas de elevada densidade populacional e sistemas de saúde terciários débeis. Como na Índia, muitos países africanos têm relaxado o distanciamento social e outras medidas preventivas. Um inquérito recente, realizado pelo Centro para o Controlo e Prevenção de Doenças de África (CDC África), revelou que 56% dos estados africanos estão a «ativamente relaxar os controlos e a remover o uso obrigatório de máscaras.» Para além disso, algumas partes de África têm ligações diretas e históricas com a Índia, proporcionando vias claras para a nova variante indiana se disseminar entre continentes.

Assim sendo, o que tem instigado o surto de COVID-19 na Índia e que lições podem ser retiradas do mesmo para África?

A variante da Índia é mais transmissível

Em fevereiro, a Índia registou uma queda consistente através do país e a vida parecia estar a retornar ao normal. Infelizmente, isto foi a calmaria antes da tempestade. Nesse mesmo mês, a nova variante, B.1.617, foi identificada no estado oeste de Maharashtra, onde se situa a maior cidade indiana, Mumbai. Geralmente conhecida agora como a «variante da Índia», crê-se que a B.1.617 é 50% mais transmissível que as variantes do Reino Unido ou da África do Sul, que, por sua vez, são consideradas 50% mais transmissíveis que a variante original, SARS-CoV-2, detetada em Wuhan.

Alguns especialistas acreditam que a emergência da B.1.617 representa um ponto de viragem significativo. Dentro de semanas, a nova variante disseminou-se pelo sudoeste indiano e para Nova Deli e estados do norte circundantes. Os centros urbanos de elevada densidade populacional de Nova Deli e Mumbai tornaram-se focos de contágio. O vírus começou, então, a disseminar-se rapidamente nos estados pobres e rurais por todo o país.

Os profissionais de saúde dizem que a nova variante está a infetar mais jovens em comparação com as transmissões de 2020. Várias variantes circulam agora na Índia, incluindo aa variantes brasileira (P.1) e a britânica (B.1.1.7). Além disso, uma variante mutante tripla, a B.1.618, foi identificada e está a circular predominantemente no estado de Bengala Ocidental. Uma variante mutante tripla forma-se quando três mutações de um vírus se combinam para formar uma nova variante. Muito permanece por se saber sobre a B.1.618, apesar de os relatórios iniciais sugerirem que possa ser mais infeciosa que as outras variantes.

Complacência e aligeiramento das restrições

Quando a pandemia de COVID-19 emergiu como uma ameaça global em 2020, as autoridades indianas implementaram um confinamento rigoroso e precoce, campanhas educativas sobre o uso de máscara e reforçaram a testagem e o rastreamento dos contactos onde foi possível. Contudo, desde o pio de infeções em setembro de 2020, começou a emergir uma narrativa pública de que a COVID-19 já não era uma ameaça grave. Também se acreditava que as grandes cidades já tinham alcançado um estado de imunidade de grupo. A juventude relativa da Índia e a população maioritariamente rural que passa muito do seu tempo no exterior contribuíram ainda mais para a ideia de que a Índia tinha escapado às emergências de saúde vistas noutras partes do mundo.

«As mensagens do governo durante os primeiros meses de 2021 reforçaram a narrativa de que a Índia já não estava em risco.»

As mensagens do governo durante os primeiros meses de 2021 reforçaram a narrativa de que a Índia já não estava em risco. O primeiro-ministro Narendra Modi declarou vitória sobre o coronavírus no final de janeiro. Em março, o ministro da saúde indiano, Harsh Vardham, proclamou que o país estava «na reta final da pandemia de Covid-19».

Também se instalou a fadiga comportamental. A utilização de máscara diminuiu, assim como o distanciamento social, tudo enquanto o turismo reabria e as pessoas começavam a viajar para outras partes do país, como nos tempos anteriores à pandemia. Os líderes do estado ocidental de Goa, um destino turístico popular, começaram a ignorar os protocolos pandémicos e a permitir a entrada de milhares de turistas num esforço para recuperar da quebra económica do confinamento de 2020. No entanto, acredita-se que Goa seja o epicentro da vaga de 2021 e que tenha agora uma das taxas de infeção mais elevadas do país.

As pessoas começaram a socializar em grandes ajuntamentos também noutros pontos do país. Os protocolos COVID-19 contraditórios que exigiam recolheres obrigatórios noturnos rigorosos e confinamentos aos fins de semanao mesmo tempo que permitiam a realização de grandes casamentos e de festivais religiosos em massa apenas ajudaram à confusão e complacência coletivas. O rastreamento de contacto e acompanhamento em campo pararam na generalidade.

Eventos de grande disseminação

O surto de COVID-19 na índia foi também aparentemente impulsionado por vários eventos de grande disseminação. Mais proeminentemente, houve dois jogos internacionais de críquete no estado de Gujarat, no ocidente da Índia, onde 130.000 adeptos se juntaram, na sua maioria sem máscara, no Estádio Narendra Modi.

As multidões sem máscara encheram as ruas durante o Festival indiano Kumbh Mela em abril de 2021. (Fotografia: balouriarajesh)

O próprio primeiro-ministro Modi, sem máscara, fez campanha nos comícios das eleições estatais repletos de apoiantes sem máscara durante março e abril. Na Bengala Ocidental, onde os votos são realizados em oito fases, as infeções dispararam desde então.

Milhares reuniram-se no estado de Uttar Pradesh para festejar o Holi, o festival das cores que decorre durante uma semana e que começou a 29 de março. Entretanto, milhares de pessoas peregrinaram até ao festival Hindu Kumbh Mela no estado de Uttarakhand em abril, o que possivelmente resultou «no maior [evento] de grande disseminação na história desta pandemia.»  Os líderes em Uttarakhand não só permitiram que o festival se realizasse, mas também encorajaram abertamente a participação de pessoas vindas de todo o mundo afirmando que «Ninguém será detido em nome da Covid-19.»

Aviso para África

O surto recente de casos de COVID-19 na Índia realça porque é que os países africanos não podem baixar as guardas ou sucumbir a mitos que lançam a dúvida sobre como parar a pandemia. Mais importante, a variante indiana já chegou a África. Foi detetada inicialmente no Uganda a 29 de abril de 2021 e está agora em circulação em pelo menos 16 países africanos. Além disso, os hospitais e as UCI do Uganda estão atualmente a reportar um excesso de casos associados à variante indiana. Muitos dos doentes que chegam são pessoas jovens. A Índia também partilha características sociais semelhantes com a África: uma população jovem, estruturas familiares alargadas que incluem a prestação de cuidados a idosos em casa e o regresso às áreas rurais e menos povoadas de origem em momentos de crise.

A análise prévia mostrou que não existe uma única trajetória da COVID-19 em África. Aliás, refletindo a grande diversidade do continente, existem vários perfis de risco diferentes. Dois destes perfis de risco – o Microcosmo Complexo e os Países de Entrada – parecem ser particularmente relevantes ao avaliar o risco de surtos indianos em África.

O Microcosmo Complexo representa os países com grandes populações urbanas e as paisagens sociais e geográficas com grandes variações. Muitos habitantes de países como a República Democrática do Congo, Nigéria, Sudão, Camarões e Etiópia  vivem em aglomerados informais densamente povoados, deixando-os particularmente suscetíveis à rápida transmissão do coronavírus. Este grupo também tem um nível de risco mais elevado devido aos seus sistemas de saúde mais frágeis, o que limita a capacidade de testagem, comunicação e resposta às transmissões. Tanto a República Democrática do Congo como a Nigéria estão entre os países com Microcosmos Complexos que já detetaram a variante indiana.

Os Países Porta de Entrada, tais como o Egito, Argélia, Marrocos e a África do Sul, possuem alguns dos níveis mais elevados de comércio internacional, viagens, turismo e tráfego portuário do país. Isto deixa-os mais expostos a variantes potencialmente mais infeciosas e mortais que emergiram noutras partes do mundo, como a Índia. A natureza interligada do sul asiático e do continente africano é evidenciada pela deteção precoce da variante indiana na Argélia, Marrocos e África do Sul.

A Índia e o continente africano possuem fortes laços históricos, culturais e económicos. Cerca de 3 milhões de pessoas de origem indiana vivem no continente e a Índia é o segundo parceiro comercial mais importante a seguir à China de África. O Sul e o Leste de África, em particular, têm laços profundos com a Índia e grandes populações indianas com família em ambos os continentes. Em suma, há vários caminhos trilhados económica e socialmente que permitem que a variante indiana chegue a África.

Prioridades para África

As lições aprendidas com a Índia mostram que o surto de COVID-19 sem precedentes foi impulsionado tanto por uma variante mais transmissível assim como por terem baixado as guardas relativamente às medidas preventivas de saúde pública. Isto expôs a vulnerabilidade da demografia estreitamente integrada e densamente povoada da Índia. Vários países africanos também enfrentam riscos elevados de disseminação da pandemia. A aprendizagem com a experiência da Índia destaca várias prioridades para África.

Vista aérea de Mombasa, Quénia. (Foto: Leo Hempstone)

Vigilância contínua. A África deve permanecer vigilante uma vez que algumas das mesmas presumíveis proteções alegadas pela Índia, tais como grandes populações rurais que passam grande parte do dia no exterior, podem não ser uma proteção para a próxima vaga. As novas variantes indianas na Índia estão a disseminar-se rapidamente entre as populações jovens e há evidências de que estas variantes mais recentes em vez de apenas explorarem sistemas imunitários comprometidos, estão a fazer com que alguns sistemas imunitários jovens e saudáveis tenham uma reação exagerada, resultando em inflamação severa e outros sintomas sérios.

Este foi o padrão observado em África durante a pandemia de gripe espanhola em 1918-1919. A segunda vaga desta pandemia foi o resultado de uma estirpe significativamente mais infeciosa e letal que devastou o continente, infetando os jovens e saudáveis. Os países fora de África expostos à primeira vaga ligeira pareceram experienciar um impacto reduzido durante a segunda vaga, ainda que as duas estirpes fossem significativamente diferentes. Ao ter escapado à primeira vaga ligeira, a África ficou particularmente vulnerável à segunda vaga virulenta.

Importância continuada do uso de máscara e do distanciamento social. A força do sistema de saúde público africano é a ênfase que coloca na prevenção acima dos cuidados curativos. Os sistemas de saúde africanos não têm as infraestruturas ou fornecimentos para responder a casos em massa.

Contudo, muitos países africanos têm estado a aligeirar a exigência de máscara e os controlos de distanciamento social. Em 8 de maio, o Africa CDC acolheu uma Reunião Conjunta da União Africana dos Ministros da Saúde sobre a COVID-19 para encorajar os governos a ultrapassar a fadiga pandémica e a investir na preparação. Com os olhos postos na Índia, as medidas de prevenção como o uso de máscara, o distanciamento social e a boa higiene das mãos são ainda muito importantes até as vacinas se tornarem mais disponíveis.

«A África deve permanecer vigilante uma vez que algumas das mesmas presumíveis proteções alegadas pela Índia, tais como grandes populações rurais que passam grande parte do dia no exterior, podem não ser uma proteção para a próxima vaga.»

Mensagens públicas. A Índia sofreu com as mensagens confusas nas fases iniciais do surto, com líderes e funcionários de saúde pública proeminentes a minimizar a gravidade do risco e a não dar o exemplo de práticas seguras com os seus próprios comportamentos. Tal como fizeram com o início da pandemia, os líderes africanos devem comunicar de forma clara e consistente que a ameaça da COVID-19 persiste. Deve ser feito um apelo especial aos jovens, que podem sentir-se imunes, mas que enfrentam maiores riscos em relação à variante indiana do que às variantes anteriores que foram transmitidas no continente. Nos casos em que há um baixo nível de confiança nas comunicações governamentais, a comunicação por parte de interlocutores de confiança, tais como profissionais de saúde pública, líderes culturais e religiosos, líderes comunitários, e celebridades, será especialmente importante.

Reforço das campanhas de vacinação. Segundo o Africa CDC, o continente administrou apenas 24,2 milhões de doses a uma população de 1,3 mil milhões de habitantes. Representando menos de 2% da população, esta é a taxa de vacinação mais baixa de qualquer região do mundo. Com a variante indiana e outras variantes a percorrer a África, o potencial para o surgimento de variantes adicionais aumenta, representando ameaças ~instáveis para os cidadãos do continente. A contenção do vírus em África, por sua vez, é parte integrante da campanha global para acabar com a pandemia. Reconhecendo as implicações de segurança global se o vírus continuar a propagar-se sem controlo em zonas de África, o Conselho de Segurança das Nações Unidas manifestou preocupação relativamente ao nível de vacinas que vão para África.

Embora isto possa em grande parte ser atribuído à disponibilidade limitada de vacinas em África durante a primeira parte de 2021, esta situação está a mudar. Alguns países africanos não podem agora utilizar as doses de que dispõem em resultado de uma hesitação generalizada em relação às vacinas, motivada por mitos em torno da segurança das vacinas. Entretanto, vários países africanos ainda não fizeram as suas encomendas de vacinas ao Afreximbank.

Os governos africanos e os funcionários de saúde pública precisam, portanto, de acelerar todas as fases do processo de vacinação contra a COVID-19 – sensibilização e educação do público, identificação de populações vulneráveis para priorização, e preparativos logísticos e alcance – para um esforço de vacinação em massa a fim de atingir uma parte tão grande quanto possível das suas populações. As redes bem estabelecidas de trabalhadores comunitários de saúde em África fornecem uma espinha dorsal vital, bem como um mecanismo de prestação de serviços fiável e experiente para alcançar com sucesso estes objetivos. Com o apoio técnico, financeiro e logístico de parceiros externos, as campanhas de vacinação africanas podem estar à altura do desafio.


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