Gritos da comunidade: Escutar o povo de Cabo Delgado

Estabilizar o norte de Moçambique exige mais do que derrotar extremistas violentos. Requer igualmente o restabelecimento da confiança junto das comunidades locais traumatizadas.


English | Français | Português

A displaced family in Cabo Delgado, Mozambique

Família deslocada em Cabo Delgado, Moçambique. (Foto: UNHCR)

A província de Cabo Delgado, a mais setentrional de Moçambique, tem sido flagelada pelo aumento do extremismo violento desde 2017. Mais de 3 300 pessoas terão sido mortas pelo Ahlu Sunnah wa Jama’a (ASWJ), em muitos casos de uma forma destinada a chocar e a aterrorizar as comunidades locais. Mais de dois terços dos casos de violência pelo ASWJ visaram alvos civis, o que distingue as atividades do extremismo violento em Moçambique das de outros grupos islamistas em África. A violência em Cabo Delgado também gerou mais de 800 000 deslocados internos, de uma população provincial total de 2,3 milhões de habitantes.

« A violenta ameaça extremista no norte de Moçambique explora as vulnerabilidades sociais subjacentes tais como a desigualdade, os direitos não assegurados à terra e a desconfiança em relação às autoridades. »

O risco de a violência no norte de Moçambique se espalhar a outras partes do país e da África austral levou a uma série de compromissos externos para ajudar o governo moçambicano na sua luta contra a insurreição. Estes incluem destacamentos pela Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), da qual Moçambique é membro, uma força de 1000 tropas ruandesas e missões de formação militar da União Europeia, de Portugal e dos Estados Unidos.

O destacamento do Ruanda para Cabo Delgado seguiu-se a uma reunião entre os presidentes de Moçambique, Ruanda, e França. A maior companhia petrolífera francesa, a Total, com um investimento estimado em 20 mil milhões de dólares em Cabo Delgado, foi forçada a retirar o seu pessoal, interromper as suas operações e declarar caso de força maior em Abril de 2021, devido à situação de segurança. A Exxon Mobile também suspendeu os planos para construir uma instalação ainda maior em terra.

Menos bem conhecido é que a ameaça violenta extremista no norte de Moçambique explora as vulnerabilidades sociais subjacentes tais como a desigualdade, os direitos não assegurados à terra e a desconfiança em relação às autoridades. Portanto, uma resposta eficaz em Cabo Delgado vai exigir mais do que as ações de segurança convencionais. A compreensão das dinâmicas locais, que tornaram esta região vulnerável à desestabilização, será vital para uma estratégia de segurança eficaz.

Da perspectiva das comunidades locais em Cabo Delgado, a narrativa frequentemente repetida de que a insurreição faz parte de uma ameaça global ligada ao Estado islâmico apenas desvia a atenção dos verdadeiros fatores desencadeadores do conflito e das ameaças que se colocam aos meios de subsistência, segurança e condições que permitiriam aos deslocados à força o regresso às suas terras ancestrais.

A crise em Cabo Delgado começa com um forte défice de confiança nas instituições governamentais, que são vistas como tendo explorado as populações locais durante muito tempo. Restaurar a confiança da população no governo e nos prestadores de serviços públicos – nomeadamente, na polícia, nas forças de segurança, nos trabalhadores da saúde, nos educadores e em outros – é fundamental para se pôr fim aos tumultos sangrentos. Fazê-lo é essencial para enfraquecer o domínio socio-psicológico que o ASWJ exerce sobre os jovens que engrossaram as suas fileiras.

Esta análise é extraída de entrevistas a 65 deslocados nos distritos de Pemba e Mecúfi, em acampamentos de deslocados. Muitos descreveram o que vivenciaram como uma espécie de genocídio. Descrevem dolorosamente a perda de filhos e filhas, que foram mortos ou raptados pelos «machababos» («os jovens», o nome local dos membros do ASWJ).

A maioria dos deslocados entrevistados também lamentou a perda das suas terras agrícolas, que abandonaram devido à violência. Estes residentes locais encontram-se agora sem meios de subsistência, bem como, sem ligação direta aos seus locais ancestrais culturalmente importantes. Estes sobreviventes foram obrigados a estabelecer-se em terras tradicionalmente ocupadas por outras pessoas, o que tem profundas implicações na hierarquia sócio-económica habitual das castas.

« Esta análise é extraída de entrevistas a 65 deslocados nos distritos de Pemba e Mecúfi, em acampamentos de deslocados. Muitos descreveram o que vivenciaram como uma espécie de genocídio. »

Muitos deslocados temem estar a tornar-se «epothas» (descendentes de escravos), o que limita os seus direitos à terra própria. Os Epothas devem trabalhar como meeiros na terra possuída por outros, a quem devem pagar uma parte de cada colheita como renda. Bem até ao começo do séculoXIX o que é agora o norte de Moçambique fora um local de carregamento de escravos para Zanzibar, Comores, Somália, Colónia do Cabo na atual África do Sul e mais além. Ao longo das regiões costeiras, a escravatura era também uma instituição. Com o fim da escravatura, muitos destes antigos escravos tornaram-se meeiros.

Ser meeiro é ser um agricultor privado de direitos políticos, sociais e fundiários. Alguns dos deslocados temem estar a tornar-se «vientes» – não são propriamente escravos, mas devem fidelidade política aos donos da terra, que têm linhagens em relação àqueles que se estabeleceram primeiro nela.

Um passado de suspeita em relação às autoridades

Nas histórias que contam, os deslocados internos e outros membros da comunidade consideram-se a si próprios vítimas. Dentro desta narrativa, tanto os «machababos» como as forças policiais e militares do governo, chamadas militares, são os vilões pelos papéis que desempenham na prática de atos violentos e em práticas corruptas. Os insurgentes são bem conhecidos pelos seus assassínios brutais de civis, por vezes, com decapitações. Alguns dos deslocados internos, além disso, relataram casos em que os militares violaram mulheres e pilharam lojas.

A woman displaced by violence in northern Mozambique

Uma mulher deslocada devido à violência no norte de Moçambique. (Foto: UNHCR)

Muitos dos alegados abusos por parte dos militares seguiram-se a ataques a aldeias pelos insurretos. A «Human Rights Watch» relatou que os homens encontrados nas aldeias de Cabo Delgado, pelas forças de segurança, foram reunidos e mantidos em detenção militar sem o devido processo legal. As forças de segurança que chegam às aldeias, várias horas após um ataque insurreto, terão prendido jovens e outros que se recusam a cooperar com eles. Por sua vez, estas ações severas de repressão da segurança encontram-se ligadas à ocorrência de um maior recrutamento por parte do ASWJ.

Muitas das pessoas entrevistadas acreditam que a violência foi deliberadamente planeada para as retirar das suas terras. Pungentemente, em Janeiro de 2019, os ataques crescentes dos «machababos» e as duras reações dos agentes de segurança levaram os residentes a tomarem as ruas da cidade de Palma. Entre outras queixas, os manifestantes afirmaram que os ataques do ASWJ foram apoiados por poderosas figuras moçambicanas, para expulsar os habitantes locais das suas terras. As comunidades locais acreditam que estes atores, com boas ligações políticas, vão então reclamar a posse e o lucro da terra, que tem vindo a aumentar de valor devido aos vastos investimentos estrangeiros, que estão a ser feitos em Cabo Delgado, para explorar os seus recursos minerais e petrolíferos.

« As redes de contrabando de heroína, rubis, ouro, madeira, vida selvagem e migrantes… são uma parte importante da economia política do norte de Moçambique. »

Embora não existam provas conhecidas, que apoiem esta narrativa, até mesmo o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, afirmou, sem fornecer provas, que certos empresários moçambicanos fornecem, provavelmente, apoio financeiro aos «machababos» para promover os seus interesses comerciais. Os fluxos ilícitos e as redes de contrabando de heroína, rubis, ouro, madeira, vida selvagem e migrantes encontram-se enraizados em Cabo Delgado há décadas e constituem uma parte importante da economia política do norte de Moçambique. Há relatos que indicam que estas rotas de tráfico estão a deslocar-se fora da zona controlada pelos insurretos, que se encontra altamente militarizada, limitando a capacidade dos insurretos de beneficiarem da economia ilícita. No entanto, algo que mostra a motivação criminosa por detrás de, pelo menos, parte da violência, é o facto de os militantes serem conhecidos por manter pessoas cativas como reféns a troco de resgate, utilizando o acesso a telemóveis e a aplicações de transferências de dinheiro para obter os pagamentos.

A crença popular nos motivos económicos para forçar as populações a saírem das suas terras sublinha a desconfiança dessas comunidades locais em relação ao governo, a suspeita dos moçambicanos da parte sul do país e as percepções de injustiça no sistema de posse de terra de Moçambique, que os deixa vulneráveis à perda das suas terras. Nos termos da lei, o Estado é proprietário das terras e os cidadãos são meros ocupantes com o direito de utilização e melhoria dos terrenos. Na prática, segundo uma avaliação da USAID, « os direitos fundiários dos pequenos proprietários agrícolas continuam susceptíveis de ser capturados por elementos da elite que, muitas vezes, gozam de apoio estatal, com o argumento de terem uma maior capacidade do que os pequenos proprietários para mobilizar os recursos não utilizados para a produção. Estas condições tornam difícil às comunidades e aos proprietários individuais de terras, sem documentação formal sobre a posse de terra, a defesa dos seus direitos contra terceiros, bem como, fazerem investimentos a longo prazo nas suas terras ou envolverem-se de forma significativa em negociações com o sector privado. »

Os «machababos» aproveitam-se da sensação de vulnerabilidade social e económica da população. Um estudo baseado em entrevistas a 23 mulheres, que passaram pela experiência de doutrinação ideológica em campos de insurreição, revelou que a promessa dos «machabababos» de uma ordem social messiânica e a provisão de benefícios básicos – tais como alimentação, vestuário e proteção contra a violência – era sedutora para uma população que sofre de insegurança social e alimentar e se encontra exposta à violência.

Medidas para restabelecer a confiança

A medida mais importante que o governo moçambicano pode tomar é mudar a sua narrativa estratégica de comunicação para uma expressão clara e inequívoca de que o bem-estar do povo de Cabo Delgado é a principal preocupação do governo. Esta mudança de narrativa deve ser acompanhada de ações concretas de desenvolvimento e um diálogo maisamplo e autêntico com as comunidades afetadas. Dadas as suas percepções de marginalização, as comunidades de Cabo Delgado atribuem uma grande importância às ações de proximidade, a ser ouvidas, tranquilizadas e respeitadas pelas autoridades governamentais a todos os níveis. Ver o conflito através dos olhos das comunidades locais, por sua vez, é de importância crítica para a criação de confiança e para facilitar o estabelecimento de uma interação substancial e produtiva entre as comunidades e o governo.

Tais compromissos também vão ajudar a assegurar que as prioridades definidas pela comunidade sejam cumpridas. As abordagens participativas das comunidades também vão contribuir para uma maior apropriação comunitária dos processos económicos e de desenvolvimento, reforçando um sentimento de auto-eficácia no seio das comunidades visadas. Estas técnicas são, geralmente, utilizadas nos domínios da saúde pública, adaptação às alterações climáticas, gestão de recursos e muito mais. Diálogos sinceros com as partes interessadas da comunidade têm o potencial de restaurar a confiança numa população, que se sente negligenciada e maltratada e podem ajudar a inspirar um sentimento de esperança numa população traumatizada pelo conflito.

« Diálogos sinceros com as partes interessadas da comunidade têm o potencial de restaurar a confiança numa população que se sente negligenciada e maltratada. »

A introdução de uma maior fiscalização comunitária por parte da polícia é outro passo importante com vista a diminuir a corrupção e melhorar a justiça penal. A corrupção afeta significativamente a confiança dos cidadãos nos acordos políticos e reduz a vontade dos cidadãos de se envolverem com os sistemas formais de policiamento e justiça. A percepção da corrupção nos sectores da segurança e da justiça tem um efeito particularmente debilitante na confiança nos poderes públicos. Os crimes violentos e os conflitos têm mais probabilidade de acontecer em tais contextos.

Devido às violações dos direitos humanos amplamente noticiadas pelas Forças de Defesa e Segurança de Moçambique e pela Força de Intervenção Rápida de elite, todas as ações de formação em segurança ministradas pela comunidade internacional precisam de incorporar componentes eficazes em matéria de direitos humanos. Estas intervenções de formação devem incluir mecanismos de monitorização e avaliação para assegurar que são alcançados resultados significativos e, caso contrário, que são tomadas medidas corretivas para assegurar que os direitos humanos são respeitados.


Recursos adicionais