Os diversos fatores que desencadearam a violência extremista na região norte de Moçambique

A ameaça da violência extremista na região norte de Moçambique explora as vulnerabilidades intrínsecas da desigualdade social, da insegurança relativa aos direitos de propriedade e da falta de confiança nas autoridades.


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A sign on the border of Cabo Delgado province

Sinalização no fronteira ou nos limteslimite da província de Cabo Delgado. (Foto: F Mira)

movimento islâmico armado em Moçambique sedeado na província de Cabo Delgado e conhecido localmente como “al-Shabaab” (sem relação direta com o grupo militante da Somália) ou “Swahili Sunnah” (o caminho suaíli), entre outros nomes, é responsável por mais de 100 mortes, pela destruição de propriedades e pelo desalojamento e a movimentação de milhares de pessoas. O grupo captou a atenção pública pela primeira vez com o ataque a uma esquadra de polícia, em outubro de 2017. Inspirado pelos ensinamentos do falecido pregador radical queniano Aboud Rogo, o grupo era visto pela sua juventude e impetuosidade, e em conflito com o Conselho Muçulmano já estabelecido na região. Incapaz de conquistar a confiança da liderança muçulmana, o grupo criou suas próprias mesquitas e madraças, e recrutou jovens locais, cultivando sentimentos de descontentamento.

Desde maio de 2018, os ataques do grupo têm-se tornado mais indiscriminados e violentos — chegando a incluir decapitações. Diversas aldeias foram atacadas, tendo sido incendiadas ou destruídas mais de 1.000 habitações. Adicionalmente, tem sido reportado que elementos deste grupo começaram também a sequestrar mulheres e meninas.

A situação na região norte de Moçambique tem vindo a agravar-se devido a uma série de fatores latentes — incluindo disputas por terras, realojamentos e desconfiança dos agentes políticos locais.

O grupo foi também responsável por um ataque a um comboio que transportava trabalhadores e mantimentos para a Anadarko, uma empresa multinacional de petróleo e gás, resultando na suspensão temporária dos trabalhos de construção do complexo industrial de grande dimensão de GNL (gás liquefeito natural) em Cabo Delgado.

A insegurança e os desalojamentos têm vindo a causar impactos negativos nas comunidades locais e no desenvolvimento económico da região. Isso inclui interrupções nas atividades agrícolas, as quais podem agravar ainda mais a crise, com consequências também na segurança alimentar.

A resposta musculada das forças de segurança moçambicanas após ataques extremistas têm acentuado a falta de confiança entre os residentes locais. Conforme a Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos), homens encontrados em aldeias de Cabo Delgado foram detidos pelas forças de segurança e colocados em prisão militar , sem terem sido conduzidos os processos devidos. Esta forma de ação das forças de segurança tem alegadamente contribuído para estimular o recrutamento do al-Shabaab na região.

Damage after an attack in northern Mozambique.

Destruição após um ataque na região norte de Moçambique. (Foto: VOA)

As respostas indiscriminadas das forças de segurança à intensificação de ataques violentos pelos extremistas constitui um padrão recorrente em outros lugares de África, tais como a Somália, a Bacia do Lago Chade, o Sahel e o Magrebe. Contudo, a situação na região norte de Moçambique, tem vindo a agravar-se devido auma série de fatores latentes — onde se incluem as a lutas pela posse de terras, os realojamentos e a falta de confiança nos agentes políticos locais, aspetos que estão a alimentar tensões e por conseguinte requerem respostas mais abrangentes.

Tensões/disputas por terras

Na cidade de Pemba, capital de Cabo Delgado, a intensificação dos ataques e as respostas radicais das forças de segurança têm levado seus residentes às ruas em manifestações de protesto. Para além de outros protestos, os manifestantes alegam que os ataques insurgentes estão a ser apoiados por figuras moçambicanas poderosas, a fim de forçar os habitantes locais a abandonarem as suas terras. Acredita-se também que estas figuras com ligações políticas virão a tomar posse das terras, lucrando com o aumento do seu valor devido a investimentos consideráveis que estão a ser feitos por estrangeiros em Cabo Delgado. Apesar de não haver evidências para substanciar essa narrativa, ela ecoa a falta de confiança da população local no governo e a perceção de injustiça inerente ao sistema de posse de terra em Moçambique, o qual deixa a população mais vulnerável e receosa de vir a perder as suas terras.

“Alegadamente, os abusos de direitos humanos atribuídos a forças de segurança privadas … terão motivado os primeiros ataques do grupo islâmico armado.”

O imergir do extremismo violento em Cabo Delgado aconteceu num cenário de um crescente interesse económico estrangeiro na região. Alegadamente, abusos de direitos humanos perpetrados por forças de segurança privadas contratadas pela multinacional Gemfields, a qual detém uma concessão de mineração de rubis, terão motivado, em outubro de 2017, os primeiros ataques do grupo islâmico armado em Mocímboa da Praia. No distrito de Montepuez, estas forças de segurança privada alegadamente terão destruído propriedades dos mineiros, torturando e matando alguns moradores, muitos dos quais mineiros artesanais, com o objetivo de obrigá-los a sair da área de concessão da empresa. Este distrito alberga uma das maiores reservas de rubis de todo o mundo.

As reinstalações agravam um panorama social já bastante delicado

Enquanto isso, a empresa Anadarko obteve concessões junto do governo moçambicano para construir e operar uma das maiores fábricas de GNLL do mundo, e desenvolver um porto capaz de abrigar embarcações especialmente projetadas para transportar GNL. No âmbito do seu envolvimento, a Anadarko tem procurado promover um impacto positivo nas comunidades locais e contribuir para a estabilização da região, o que levaria à criação de um ambiente operacional mais seguro.

O desenvolvimento do projeto de GNL, no entanto, implicou a reinstalação de milhares de fazendeiros e pescadores da península Afungi, no distrito de Palma, província de Cabo Delgado. O objetivo declarado da Anadarko tem sido o de supervisionar  estas reinstalações de maneira a devolver  ou mesmo melhorar o padrão de vida dos que foram deslocados. Contudo, apesar dos mil milhões de dólares investidos na região pelas principais empresas de petróleo e gás, a perceção é de que as comunidades locais, na sua maioria muçulmanas, tem beneficiado pouco. Contrariamente ao pretendido, os esforços de reinstalação poderão estar na origem de a precipitar sentimentos negativos e a intensificar os riscos de segurança a curto e a longo prazo. Entrevistas no distrito de Palma revelaram que alguns dos jovens “reinstalados” se afiliaram aos escalões do al-Shabaab.

Os residentes de Palma falam sobre uma insatisfação generalizada para com a implementação do programa de reinstalação e do impacto que está a ter nas comunidades desta área. Os líderes das comunidades locais têm reclamado do desvio de verbas destinadas a auxiliar a população deslocada, de pagamentos injustos pelas suas terras e da falta de compensação pelos seus investimentos realizados em árvores de fruto. Além disso, também dizem que certas famílias foram reinstaladas em comunidades para eles desconhecidas, dando como exemplo a reinstalação frequente de pescadores em comunidades do interior, resultando na perda da sua forma de subsistência.

“O desenvolvimento do projeto de GNL, no entanto, implicava a reinstalação de milhares de fazendeiros e pescadores … os esforços de reinstalação podem estar na origem de sentimentos negativos e a acentuar os riscos de segurança a curto e a longo prazo.”

O programa também está agravar as tensões entre os que estão a ser deslocados e os donos de terra (conceito que aqui se refere às primeiras linhagens familiares que historicamente têm ocupado uma determinada área e que detêm certos direitos, incluindo o de deferência política). Um segundo grupo conhecido como os vientes, que chegaram mais recentemente, são aqueles que, tradicionalmente, negoceiam com os donos de terra para poder usar as terras. Os epothas, são um terceiro grupo, constituído por descendentes de escravos desprovidos de qualquer direito a terras, e tem que trabalhar como arrendatários meeiros nas terras que são propriedade dos donos de terra e dos vientes.

A perceção da população local com respeito às reinstalações é ainda mais complicada pelo histórico de esquemas de “villagisation” processo que ocorreu durante a guerra de independência de Moçambique. Este processo constituía uma tentativa dos militares portugueses coloniais de reinstalar famílias em aldeias concentradas, a fim de melhorar a sua monitorização e evitar que as populações locais abrigassem combatentes da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), movimento cuja base situava-se na Tanzânia, um país vizinho.

A pipeline carrying natural gas from Mozambique to South Africa

Um gasoduto que leva gás natural de Moçambique à África do Sul. (Foto: Panos / Trygve Bolstad)

Apos terem obtido o controlo da província de Cabo Delgado, as forças pró-independência implementaram seu próprio projeto de villagisation como método para o desenvolvimento rural e mobilização política. Adicionalmente, muitos dos refugiados que se exilaram na Tanzânia durante a luta anticolonial foram reinstalados em Cabo Delgado. As traumáticas lembranças desses processos de villagisation e reinstalação, praticados entre as décadas de 1960 e 1970, permanecem vivos na memória coletiva das populações rurais.

A complicar ainda mais este processo de reinstalação está o sistema legal de posse de terra que leva muitos dos reinstalados a entender que o Estado falha na proteção dos seus interesses. O Estado é o proprietário da terra e os seus habitantes possuem o direito de a usar e desenvolver. Conforme uma avaliação realizada pela USAID (Agência para o Desenvolvimento Internacional), na prática, o “direito dos pequenos produtores sobre as terras continua vulnerável ao apoderamento pelas elites”, as quais, frequentemente, desfrutam do apoio do Estado no pressuposto de que estas possuem uma maior capacidade para explorar os recursos disponíveis. Essas condições e a falta de documentação formal relativamente à posse das terras fazem com que as comunidades e os proprietários individuais tenham dificuldades em defender os seus direitos contra terceiros, em fazer investimentos de longo prazo ou em participar em negociações relevantes com o setor privado.”

Segundo vários entrevistados em Cabo Delgado, as disputas pelo uso das terras entre a população local têm contribuído para a incapacidade de muitos dos deslocados pela Anadarko de assegurarem a sua subsistência. Alguns dos violentos ataques a comunidades locais por jihadistas são, provavelmente, retaliações motivadas por disputas de acesso a terras e perceção de estatuto social.

Crime organizado, influências corruptivas e falta de confiança nas entidades públicas

A presença de redes de crime organizado em Cabo Delgado e províncias vizinhas também tem contribuído para esta instabilidade. Essas redes tem estado envolvidas no comércio ilícito de animais selvagens, madeira, pedras preciosas, ouro e narcóticos, incluindo heroína e o tráfico de pessoas. A corrupção promovida pelo crime organizado envolvendo, alegadamente, agentes do Estado, incluindo policias, tem exacerbado a falta de confiança pública no governo, alimentando uma narrativa de que o governo não está ao lado das populações.

Mohamed Bachir Suleman, um dos maiores traficantes de narcóticos moçambicanos, o qual foi classificado pelo governo dos EUA como um dos principais líderes de redes de tráfico de drogas em 2010, de acordo com a Lei de Designação de Chefes de Tráfico de Drogas Estrangeiros, exerce, supostamente, influência em determinadas figuras políticas e religiosas de Cabo Delgado, e de outros lugares em Moçambique.

“A corrupção promovida pelo crime organizado, alegadamente envolvendo agentes do Estado, incluindo polícias, tem exacerbado a falta de confiança das populações no governo.”

Tanzanianos, assim como cidadãos de Mali, Etiópia, República Democrática do Congo, Ruanda, Somália, Nigéria e Camarões, estão entre os africanos envolvidos nos mercados do crime no norte de Moçambique. Grupos criminosos do Sul da Ásia (heroína), da China (madeira e marfim) e da Tailândia (pedras preciosas) operam também na região. A rota marítima comercial transporta drogas produzidas no Afeganistão por toda a costa oriental africana, desde a Somália até à região norte de Moçambique. Uma parte da heroína entra em Moçambique pelos portos de Pemba, em Cabo Delgado, e de Nacala, na província vizinha de Nampula.

Há também evidências de que carregamentos maiores de heroína estão a chegar a Moçambique por via terrestre, a partir da Tanzânia e do Quénia. Os traficantes de drogas dependem de subornos e tiram partido da escassez generalizada de agentes da lei e de forças de segurança. A heroína que chega por vias terrestres e pelos portos é então transportada por via rodoviária até à África do Sul e grande parte canalizada para a Europa. Apesar de ter havido alegações de que os jihadistas estão a tirar partido da participação neste comércio ilícito, não existem ainda evidências que o comprovem.

A prisão de vários ugandeses acusados de terrorismo no norte de Moçambique, tem fomentado especulações de possíveis ligações com as redes jihadistas mundiais, potenciadas pelo facto de um grupo extremista que opera o na fronteira do Congo com a Uganda, o Allied Democratic Front (Forças Democráticas Aliadas), ter declarado sua lealdade ao Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL). Porém, alguns dos ugandeses detidos disseram que são membros do al-Shabaab, no Uganda. A primeira vez que um dispositivo explosivo improvisado  (IED, na sigla em inglês) foi usado em Cabo Delgado, em 20 de março de 2019, que aparentemente terá vitimado vários soldados suscitou a questão de que estes jihadistas moçambicanos possam ter recebido formação com agentes estrangeiros.

Encontrar um caminho em frente

O surgimento de movimentos extremistas islâmicos na região norte de Moçambique é um fenómeno multifacetado. Embora as influências ideológicas externas e divisionistas possam ter desencadeado a violência, o apoio a esse movimento é alimentado por ressentimentos ligados às reinstalações, aos abusos dos direitos humanos pelas forças de segurança e à falta de direitos que os pequenos produtores da região detêm sobre as terras que ocupam. A ausência de confiança no governo, a corrupção e o impacto de investimentos estrangeiros representam desafios para a obtenção de soluções capazes de estabilizar Cabo Delgado e melhorar a qualidade de vida da população. A adoção de narrativas populares negativas referentes ao governo, a personalidades políticas e a investidores internacionais parecem estar a desencadear o recrutamento das organizações de extremismo violento.

Dadas as circunstâncias, o desafio do governo é formular uma resposta cautelosa para lidar com essa ameaça militante islâmica. A continuação de intervenções musculadas pelas forças de segurança do governo provavelmente resultará em ainda mais extremismos e tensões. Por outro lado, minimizar a situação chamando-a de “banditismo”, tal como vários representantes do governo o têm feito, e ignorar a narrativa abrangente dos protestos e conflitos de natureza socioeconómica também pode conduzir a um agravamento do problema.

Encontrar uma plataforma comum a partir da qual se possa desenvolver a confiança não será uma tarefa simples. Isso exigirá a mediação e diálogo comunitário que envolva os líderes tradicionais, religiosos (muçulmanos e cristãos) das comunidades e ainda a inclusão das mulheres e jovens, autoridades governamentais e administrativas, educadores, pessoal da segurança e profissionais da saúde.

The port of Pemba, Mozambique

Porto de Pemba, capital da província de Cabo Delgado. (Foto: Ton Rulkens)

Luís Fernando, o Bispo da Igreja Católica Romana sediado em Pemba, enquadra os esforços contra o extremismo violento na província como uma questão de justiça social. Numa carta pastoral enviada em junho de 2018, o bispo Fernando observa que a província é uma das mais pobres de Moçambique. O Bispo acrescenta que, se o desenvolvimento económico levar isso em consideração, a riqueza natural da província pode gerar empregos, estabilidade e esperança entre os jovens. A população da região e a nação serão beneficiados por investimentos bem geridos, compartilhados e controlados.

O aumento da participação da comunidade será vital para a resolução dos problemas socioeconómicos e das questões resultantes das reinstalações, assim como da supervisão do policiamento. Para isso, as autoridades terão de ser capacitadas para que possam comunicar com os cidadãos de maneira a fazer com que estes se sintam ouvidos e respeitados. Da mesma forma, os meios de comunicação locais, especialmente a rádio comunitária, pode ser um importante aliado na resolução de problemas da comunidade e na promoção da participação cívica. Isso pode incluir a procura de formas de divulgação de narrativas positivas dentro das redes sociais existentes, associadas a ferramentas que venham a promover o comportamento e o discurso cívicos da comunidade. Uma abordagem participativa semelhante já foi mobilizada com eficácia em partes de Cabo Delgado com o objetivo de proteger o ambiente florestal.

Estas metodologias de participação comunitária, muitas das quais fazem parte de um conjunto das designadas “melhores práticas” já usadas na área de comunicação para a mudança social e comportamental, podem ajudar a melhorar a prestação de serviços públicos, aumentar a confiança no governo, reduzir a corrupção, e a limitar a narrativa e os fatores que incentivam as atividades de recrutamento das organizações de extremismo violento.

Greg Pirio é Presidente e Robert Pittelli é Sócio da EC Associates. Yussuf Adam é Professor Adjunto de História Contemporânea da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique.


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